segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Nos tempos do fogo morto .


Cinqüenta anos depois da morte de José Lins do Rego, cidades do ciclo da cana-de-açúcar convivem com as histórias de engenhos retratados nos seus livros
foto: Augusto Pessoa
Chaminé do velho engenho onde nasceu o escritor paraibano José Lins, no município de Pilar


Fechada com um cadeado na porteira, a fazenda resiste. Das construções originais, tombadas pelo estado em 1998, resta em pé somente a casa-grande, mesmo assim, com risco de desabamento. Ela é objeto de uma disputa judicial entre as proprietárias do Engenho Corredor, o estado e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba. Final melancólico de uma história que conheceu dias bem mais opulentos no período colonial, quando a zona da mata do nordeste era dominada pela monocultura da cana. Mais tarde, em meados do século 20, os engenhos obsoletos aos poucos deixaram de fabricar açúcar, passando a vender a matéria-prima para as usinas. Era a época do “fogo morto”, retratada na principal obra do escritor paraibano José Lins do Rego, nascido ali mesmo, em junho de 1901, na velha fazenda, objeto da disputa entre seus descendentes.
foto: Augusto Pessoa
O Museu da Rapadura, em Areia, mostra como se aproveitava a cana


Situada a 56 quilômetros de João Pessoa, próximo ao município de Pilar, a fazenda é apenas uma entre as outras nove que o avô do escritor possuía na Paraíba. A maioria também está em ruínas, apesar da criação do projeto Caminhos dos Engenhos, do Sebrae, que poderia ter sido ampliado em 2007, quando o estado relembra os 50 anos da morte de José Lins do Rego. Contam a história não apenas dos tempos em que o senhor do engenho recebia os convidados de casaca, na frente do casarão, como da decadência do ciclo da cana-de-açúcar e dos coronéis que o dominaram. “José Lins, o motor que só funciona bem queimando bagaço de cana”, já dizia seu contemporâneo, o poeta Manuel Bandeira.

“Conheci Zé Lins na década de 50, quando ele estava chegando da Europa”, recorda o ex-fotógrafo Zé Ribeiro, um senhor de 82 anos que mora ao lado do prédio da Fundação Menino de Engenho, um antigo casarão onde funcionava a cadeia pública de Pilar. “Eu estava sentado na destilaria de cachaça do engenho quando ele chegou e conversou comigo. Já conhecia de vista, mas, nesse dia, a conversa foi especial. Ele descreveu as exposições de arte que visitou na Europa e a carta que escreveu para a mãe quando esteve em Roma.” Eram “causos” como aqueles que o pessoal de Pilar está acostumado a relatar, como as lendas de enforcados na antiga cadeia e a história da imagem espanhola de Nossa Senhora do Pilar que batizou a igreja. Zé Lins, como todos em Pilar, era um contador de histórias.
foto: Augusto Pessoa
Zé Ribeiro guarda antigas máquinas de projeção na garagem.


Seu conterrâneo, Zé Ribeiro, confessa que não gosta de literatura. “Meu negócio é cinema”, afirma, enquanto exibe algumas das relíquias, como as antigas máquinas de projeção, que guarda em sua garagem. Durante anos, esse ex-fotógrafo circulou pelos engenhos da região exibindo filmes em seu cinema ambulante. Cinema, a propósito, é um assunto corriqueiro em Pilar. No Engenho Outeiro, bem próximo da fazenda onde nasceu Zé Lins, foram filmadas as versões cinematográficas de Menino do Engenho e A Bagaceira – esta última, romance de José Américo de Almeida (1887-1980), que dá força à literatura realista de temática social do nordeste, pela sua denúncia dos horrores gerados pela seca.

Teatro, música e rapadura

Muda a fazenda e a cidade, mas os personagens permanecem. José Américo de Almeida foi político poderoso, nascido no Engenho Olho d’Água, na vizinha Areia, cidade tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional em reconhecimento por ter preservado, em dezenas de casarões, a arquitetura do fim do século 19 e início do século 20. O município abriga 27 engenhos – herança da época em que os senhores traziam peças da Europa para decorar suas casas e grandes espetáculos lotavam o Teatro Minerva, o primeiro do Estado da Paraíba. Diz a história que o teatro – a meio caminho da Igreja do Rosário, construída pelos escravos – recebeu esse nome depois que o político areense Horácio Silva, em 1859, encontrou uma estátua da deusa Minerva jogada num poço perto da cidade e a colocou no ponto mais alto da construção.
foto: Augusto Pessoa
A cidade de Areia ainda guarda vestígios do seu passado na arquitetura das velhas casas restauradas


Areia também é a terra natal do pintor Pedro Américo (1843-1905), autor do quadro Grito do Ipiranga, que retrata, de maneira um tanto romanceada, a declaração de Independência do Brasil por dom Pedro I. Faz parte do roteiro dos Caminhos dos Engenhos que inclui o Museu da Rapadura. Montado dentro do campus da Universidade Federal da Paraíba, é o único desse tipo no País e expõe, na casa-grande, mobiliários do século 19 e utensílios que mostram a vida na época. Na parte baixa do terreno está o engenho, que possui uma moenda acionada por animais, tachos de rapadura e os pães de açúcar – cones de madeira que eram usados para fazer açúcar mascavo.

“Aqui é o único lugar do mundo que tenho vontade de morar”, comenta Zé Preto, um desses moradores do local que parece ter saído de uma obra literária do ciclo da cana. “Sinto o cheiro do mato, dos engenhos, do couro. Essa é a minha terra.” Zé Preto divide seu tempo entre a arte de confeccionar selas e o amor pela música, muito cultivada na cidade desde a criação do Colégio Santa Rita, em 1910, com suas aulas de coral, piano e violino.

Entre riachos e cachoeiras

Em Bananeiras, vizinha de Areia, a paisagem segue colorida pelo verde que durante o ano inteiro parece pintar o Brejo paraibano, na encosta da Serra de Borborema, em meio a riachos e cachoeiras, como a do Roncador, de 40 metros de altura. A cidade, de clima de montanha, viveu um ciclo diferente – o do café. Bananeiras foi o segundo maior produtor do nordeste, como testemunham seus casarões com ladrilhos importados e o Túnel do Trem, construído em 1922, que permitiu que a estrada de ferro chegasse à cidade. A riqueza, no entanto, acabou no ano seguinte, com a praga que contaminou as plantações.
foto: Augusto Pessoa
José Pereira de Araújo toca violino e compartilha o amor pela região e pelos “causos”


Restaram, como sempre, as histórias, como as do agricultor José Pereira de Araújo, que divide seu tempo entre a enxada e o violino. “Desde menino que eu ia para a feira e ouvia os tocadores”, explica com a naturalidade que caracteriza a gente simples da região e que ainda hoje inspira poetas e escritores. Mesmo quem, como o poeta Augusto dos Anjos (1884-1914), autor de um único livro – Eu – publicado em 1912, não fale da terra na sua obra. Augusto dos Anjos nasceu no Engenho do Pau d’Arco, no município vizinho de Sapé, engolido pela Usina Santa Helena. Como notou seu conterrâneo, José Lins, apesar de ter morado no Recife ou no Rio de Janeiro, Augusto dos Anjos assinava todos os poemas como se estivesse no engenho. Era o mundo das misérias e opulências da cana que se incorporava a suas obras.

Um quadro histórico

O pintor Pedro Américo, considerado o mais famoso nativo de Areia, no Brejo paraibano, nem tinha nascido quando a Independência do Brasil foi proclamada, no dia 7 de setembro de 1822. Mas é dele a representação mais conhecida do episódio. O quadro, pintado entre 1886 e 1888, em exposição no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, vem à lembrança da maioria dos brasileiros quando imagina a cena do Grito do Ipiranga, em que o príncipe dom Pedro resolve proclamar a separação e a independência do Brasil de Portugal. A tela foi entregue à Comissão do Ipiranga em 14 de julho de 1888, mas permaneceu encaixotada por sete anos, pois o prédio ainda não estava pronto. Só passou a ocupar lugar de destaque no museu quando este foi inaugurado, já durante a República, em 7 de setembro de 1895.


Galeria de escritores

José Américo de Almeida (1887-1980)
Escreveu 17 obras, entre as quais A Bagaceira, livro que inaugura o romance regionalista, denunciando o sistema latifundiário, a seca e o cangaço. Foi político, governador da Paraíba, deputado e senador, tendo se candidatado à vice-presidência da República em 1946.

José Lins do Rego (1901-1957)
Considerado um dos grandes representantes da literatura regionalista, retrata o ciclo da cana-de-açúcar e a vida dos engenhos com suas inúmeras tragédias e contradições. Escreveu 21 livros, mas sua obra mais conhecida é Fogo Morto, em que descreve a decadência das oligarquias rurais da Paraíba com a chegada da industrialização.

Augusto dos Anjos (1884-1914)
Poeta paraibano, autor de um único livro (Eu), é considerado um dos mais originais escritores brasileiros. Sua temática está ligada à dor e à morte, com uma abordagem filosófica e introspectiva.
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